sexta-feira, dezembro 14, 2001
É aquela velha história: “O inconsciente coletivo está aí e é de quem pegar primeiro”. Acho que todo mundo, pelo menos uma vez na vida pensa sobre as pessoas que passaram em sua vida e algum fato marcante vem a memória. Fazia isso como um exercício constante, inconsciente, mesmo com pessoas que talvez se eu esbarrasse na rua mal levantaria as sobrancelhas como forma de cumprimento, porque afinal de contas ninguém passa pela nossa vida por acaso e por pior que seja a experiência, sempre deixa alguma coisa (seja boa ou ruim).Mario Prata pegou seu caderninho de telefones e achou que isso daria um livro e fez o genial (pelo menos pra mim, que me deliciei com o livro) “Minhas mulheres e meus homens”. Não resisti e peguei um trecho - tem outros muito bacanas também, só que como eu já li o livro há um tempinho, não foi tão fácil achar.
SILVINHA BUARQUE, atriz (Rio, 1973)
Era quarta-feira e a gente estava almoçando. Na minha frente Marieta. Entre nós, na cabeceira, o Chico, 29 anos, amassava o seu feijão com farinha.
O vinho nos copos e ela, cinco anos, dando volta em torno da mesa como quem nào quer nada, com uma folha de papel em branco nas mãos. Aproveitou a deixa de um segundo de silêncio entre os três , rasgou uma pontinha de papel, deu para a Marieta.
__Mamãe, carta minha, da Itália.
Marieta olhou pra gente, pegou o pedacinho de papel e nem precisou piscar para Ter a nossa cumplicidade. Começou a “ler”a carta, na maior:
Querida mamãe. Estou aqui na Itália passeando e morando na mesma Vila onde nasci. Está tudo muito bonito e a Helena está comigo. Chego na quarta-feira. Peça ao papai para ir me buscar no Galeão. Beijos da Silvia.
Guardou a carta. Continuamos o papo. Ela dá umas voltas na mesa, somo, volta e entrega uma “carta” para o pai.
__Papai, carta minha procê.
Chico abriu a carta, esticou a vista reconhecendo a letra da filha e foi lendo para nós.
Querido papai. Como você sabe, estou aqui na Itália e estou escrevendo que é para você nào esquecer de ir me buscar quarta-feira no aeroporto. Não sei se a Helena vai comigo. Ela pegou carona com uns hippies e foi para a Espanha. Chegou Quarta-feira. Um beijo da Silvia.
Aquela história dos hippies na não estava nos planos da Silvia, mas no mesmo instante chegou uma “carta” para mim.
__Carta minha para o Mario Prata (ela é sistemática, sempre me chamou pelo nome inteiro).
Eu tinha que entrar no jogo dela (e deles). E eu li também a carta que recebi, inventando, também, na hora.
Querido Mario Prata. Avise ao papai para nào esquecer de ir me buscar no aeroporto. Diga a ele e à mamãe que a Helena não vai voltar comigo porque está morando numa comunidade hippie na Espanha. Beijo para todo mundo, da Silvia.
Pronto. Estava fechado o ciclo e ela sumiu pelo apartamento. O engraçado é que o Chico e a Marieta não fizeram nenhum comentário sobre as cartas, como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.
Tudo bem. De repente, a campainha toca insistentemente. Chico pára de comer e vai abrir. Entra ela com uma sacola na mão e uma bronca na cara:
__Muito bonito, né? Pois então eu mando três cartas dizendo que vou chegar na Quarta-feira e ninguém vai me buscar no Galeão?! Tive que pegar um taxi!
Ficamos os três olhando para ela com aquela cara boba de adulto, mas o pai consertou.
__ Ih, Marieta , eu não falei que era hoje? Me desculpa, vamos entrando, vamos entrando! Dá cá um beijo! E a Itália, como está?
__A Itália está linda. Estava morrendo de saudades!
Depois de beijos normais de quem chega de viagem, sentou-se na Quarta cadeira da mesa para descansar da viagem. Ecomeçou a falr da Itália, quando a Marieta perguntou pela irmã menor.
__Ih, mamãe, está morando com uns hippies. Tentei trazer ela, mas ela quer ficar mais um pouco. Não sei se vai voltar não.
__Mas ela não mandou nenhuma carta, notícia de quendo vem, com quem está?
Ela nào se apertou.
__Lógico. Mandou uma carta para vocês.
E, da bolsa, tirou um pedacinho de papel que seria a carta da Helena. Entregou para Marieta ler. Marieta pegou a carta, deu uma olhada e resolveu ri mais longe com aquele pedaço de papel em branco.
__Leia você.
__Eu?
__ É. Leia para gente a carta da Helena.
Ela pegou o pedaço de papel, olhou para nós três. Fez uma cara de decidida e resolveu enfrentar o desafio.
Querida mamãe... Querido papai...Querido Mario Prata... Estou aqui... (enroscou) Estou aqui... (não conseguia inventar a carta da irmã) Eu...
__Mamãe, a Helena não perde essa mania de começar as cartas e não terminar!!!